Pequenos livros, grandes histórias
O Bom Soldado
Ford Madox Ford
Editora 34
458 páginas
A História Mais Bela do Mundo
três contos do mar
Kipling, London, Crane
Dantes Editora e Livraria
Esta semana me deparei com dois livros cuja primeira característica em comum é o tamanho: são ambos livros de bolso, e ambos de autores que viveram entre dois séculos – o XIX e o XX, com todos os seus dilemas morais que nos parecem tão distantes mas ao mesmo tempo com os quais ainda tanto nos identificamos. O Bom Soldado, de Ford Madox Ford, e os três contos do volume A História Mais Bela do Mundo, são narrativas de homens em tempos sombrios, que lutam para superar as adversidades... ou simplesmente tentam entendê-las, ainda que fracassando.
O fracasso é a marca do protagonista de O Bom Soldado. John Dowell, que vê a vida passar diante de si sem mover um dedo para agarrá-la, conta a um interlocutor (você, leitor), sua vida com a bela e distante Florence, garota americana cujo único interesse era se casar com um homem rico e morar na Inglaterra, terra de seus ancestrais. Lentamente, sob os olhos atentos porém inertes de Dowell, Florence se envolve com Edward Ashburnham, homem de posses e que pode dar a vida que ela deseja – ainda que não o queira, pois sua posição social é mais importante do que um caso. Por sua vez, a esposa de Edward, Leonora, acompanha tudo com frieza, esperando um desfecho trágico que evidentemente acaba por ocorrer.
O que pode parecer ao leitor desavisado um romance rosa é exatamente o oposto: um romance negro no que ele tem de mais literal, ou seja, a exploração das trevas da alma. É Dowell que nos conta, em quatro partes, como ele vai lentamente despertando de seu auto-engano (que o impede de ver o que está acontecendo ao seu redor) para a realidade. É quase uma narrativa polifônica de uma pessoa só, como se o protagonista fosse um multi-instrumentista e quisesse nos mostrar sua perícia em diversos instrumentos. E ele é um perito, não se enganem: o jogo entre os personagens, eles próprios imersos em ilusões que os impedem de ver a Primeira Guerra Mundial se aproximando, pode muito bem ter sido uma das inspirações por trás do Quinteto de Avignon, de Lawrence Durrell, escrito setenta anos mais tarde.
Editor da famosa Transatlantic Review (responsável pela primeira publicação de Ernest Hemingway, em 1922), Ford escreveu mais de oitenta livros, mas infelizmente – e incrivelmente – ainda é desconhecido do grande público leitor brasileiro. O que é uma pena.
Mas em compensação (se é que podemos falar realmente em compensação, pois este é um caso em que o leitor ganha em ambos os livros), de desconhecidos os autores da coletânea da Dantes não têm nada, nem aqui nem lá fora: Rudyard Kipling é o autor de Kim e O Livro da Selva; Stephen Crane morreu muito jovem, mas deixou sua marca na literatura mundial com O Emblema Rubro da Coragem; e Jack London escreveu, entre muitos outros, Caninos Brancos e Chamado Selvagem.
Esta pequena amostra da Dantes – livraria que, juntamente com a Berinjela, é um dos melhores sebos do Rio de Janeiro e que resolveu há alguns anos apostar na publicação de obras clássicas, diga-se de passagem com sucesso – nos traz contos curtos e extremamente pungentes sobre homens do mar e suas vidas trágicas. Em O Pagão, London – ele próprio aventureiro antes de se tornar escritor de sucesso – narra a história de Charley e sua amizade de dezessete anos com o taitiano Otoo. London, a epítome da grace under pressure vislumbrada por Hemingway em O Velho e o Mar, narra as aventuras de ambos desde o naufrágio em que se conheceram até um derradeiro encontro, novamente nas águas. Mas a aventura é o que menos importa: a verdadeira emoção está no sentimento de irmandade que une os dois homens, amigos acima de qualquer coisa, até mesmo dos lábios da Morte.
Em O Bote, Crane narra uma história ocorrida com ele próprio em 1897, quando naufragou entre Flórida e Cuba e ficou num bote à deriva com outros três tripulantes do navio que o levaria à ilha caribenha. Na época enfrentando uma guerra com a Espanha, Cuba tinha – como mudam os tempos! – o apoio incondicional dos Estados Unidos, e Crane seguiu para a ilha aos 26 anos como correspondente de um jornal. Ele acabaria chegando lá, evidentemente, mas a agonia que enfrentou durante dias seguidos sem comida e água e tendo que se revezar nos remos com os outros é de uma dor que só não é maior que a vivenciada por seus personagens de O Emblema Rubro da Coragem, escrito dois anos antes. Por fim, o clima de tensão das duas histórias é quebrado com a narrativa cômica de A História Mais Bela do Mundo, de Kipling, em que conta o imbróglio do protagonista com um jovem que comete péssimos poemas mas que subitamente demonstra conhecer coisas sobre navios e escravos gregos e escandinavos como ninguém. Loucura ou reencarnação? O desespero do escritor mais velho, alter ego de Kipling, uma espécie de versão cômica do jornalista que conversa com os aventureiros maçons em O Homem que Queria Ser Rei, é de fazer inveja a Woody Allen. Kipling, evidentemente, dá de mil a zero no nova-iorquino (algo com que este provavelmente concordaria de bom grado).
Um traço em comum nos dois pockets é a incomum (e sempre bem-vinda) preocupação dos tradutores com o leitor, manifestada pela grande quantidade de notas de rodapé. Não deixa de ser de certa forma triste que esse recurso – que quebra a suspensão da descrença de que falava Coleridge – precise cada vez mais ser utilizado, mas uma pergunta fica no ar: seria realmente necessário tanto esmero na explicação dos diversos nomes de ilhas no conto de Jack London (ilhas essas que nem todos os seus leitores conheciam tampouco, e cuja menção talvez servisse justamente para criar uma atmosfera de exotismo e mistério na narrativa)? Ou, no caso do livro de Ford, seria possível que os leitores brasileiros não soubessem o que é um Bull Terrier?
Uma curiosidade final é a pequena porém pertinente afinidade une Ford aos outros três escritores: sua amizade com Joseph Conrad, o polonês radicado na Inglaterra e que se tornaria um dos maiores escritores da língua inglesa. E foi com Conrad, autor de Lord Jim e No Coração das Trevas, ambas também histórias de mar, que Ford aprendeu a técnica de “saltos no tempo” para contar sua história em O Bom Soldado, de uma forma que deixaria orgulhoso seu mestre.
Sejam histórias terríveis como a do naufrágio de Crane, seja a história mais bela do mundo, seja a história mais triste que já se contou, mais um traço as une, e este é fundamental: são todas elas histórias do que se esconde no fundo do coração dos homens. E que, ao contrário do velho bordão do rádio, nem o Sombra sabe. Mas estes homens, ah, estes homens sabiam. Os dois últimos séculos ainda têm muito a nos ensinar.