Uma Utopia nos Limites do Possível
O subtítulo é bastante elucidativo: repensar a reforma, reformar o pensamento. O título, por mais que nos pareça gíria moderna, tem quase a idade do Descobrimento do Brasil. É do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592):
Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia.
Seu conterrâneo Edgar Morin concorda, e vai além: é preciso repensar a reforma do ensino, para reformar o pensamento e “fazer” as cabeças. É o tema deste livro de 1998, cuja quarta edição a Bertrand lançou recentemente e em boa hora: esta semana, durante o debate
Ética, Ciência e Sociedade, na Casa da Ciência, no Rio de Janeiro, o físico Luís Pinguelli Rosa, da Coppe/UFRJ, comentou a notícia de que em breve serão introduzidas nas escolas ginasiais da rede pública as cadeiras de Filosofia e Sociologia com a seguinte pergunta:
será que vale a pena incluir mais disciplinas no currículo agora? Será que, do jeito que está, elas não virão a se tornar apenas mais matérias para que os alunos tenham que estudar para tirar uma nota e passar?
A resposta de Morin, a julgar por este livro, parece óbvia: não, não vale a pena. Antes é necessário compreender o que está acontecendo na sociedade, ou seja, compreender o problema atual paradigma de educação, que institui uma visão compartimentada de mundo. Para ele,
a hiperespecialização impede de ver o global (que ela fragmenta em parcelas) bem como o essencial (que ela dilui). Em tempos de globalização, portanto, é urgente se rediscutir e repensar o paradigma, para que ele permita o pensamento complexo, ou seja, a interligação de todas as facetas que constituem a busca do conhecimento: disciplinas como História, Sociologia, Economia e Psicologia, apenas para citar algumas, podem se tornar multidimensionais e ajudar na compreensão do ser humano e do universo que o cerca.
Este livro, junto com
Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez), fornece uma boa compreensão do pensamento do próprio Morin. Introdutor do conceito de interdisciplinaridade, ele escreveu
A Cabeça Bem-Feita em 1997, a convite de Claude Allègre, na época Ministro da Educação da França, como uma espécie de manifesto-proposta para uma reforma do ensino médio.
O livro é mais um manifesto (que discute os quês e os porquês) do que uma proposta (a parte dedicada ao
como é menor do que se poderia esperar). Morin não cessa de discutir a questão da educação de uma forma que em determinados momentos dança perigosamente sobre o abismo da utopia, particularmente no Capítulo 6,
A Aprendizagem Cidadã, em que preconiza uma sociedade onde os estados-nações não mais existam ou que pelo menos possam se articular de modo mais integrado. Infelizmente (e Morin não tinha obrigação de saber), a crise deflagrada pelo ataque aos EUA no dia 11 de setembro deixa cada vez mais claro que apenas os eixos de poder foram deslocados, mas que as questões territoriais – ainda que desta vez difusas – ainda são de difícil resolução, e a paz não passa de um conceito abstrato.
Mas o que salva seu discurso de cair no vazio é justamente sua consciência disso. Morin sabe que pode estar sendo utópico, e por isso guia suas idéias por um horizonte dentro dos limites do possível: assume que parte de um princípio semelhante ao de Rousseau ao escrever o seu
Emílio, ou da Educação, e acaba escrevendo um manual destinado à reflexão, e não um guia prático com regras de como educar. Em nove capítulos e dois anexos, Morin analisa o ensino atual (tendo sempre a França como ponto de partida, mas os tópicos básicos que ele discute não diferem em nada da educação compartimentada que recebemos aqui no Brasil desde sempre) e lembra que certas áreas do saber, como a ecologia, a cosmologia e as ciências da Terra (geologia e metereologia, entre outras) já se articulam de maneira mais integrada.
O que ele propõe, no fundo, nos remete ao debate com Luís Pinguelli Rosa, que em determinado momento diz a seguinte frase emblemática:
Ciência não é só para cientistas. Ou seja, ainda que seja preciso estudar para ser um cientista, não é necessário se encastelar em uma torre de marfim e tornar esse conhecimento algo de hierático ou esotérico. O conhecimento pode e deve ser transmitido e repartido.
Morin reconhece que dentro do meio acadêmico a resistência é muito grande, e que um processo desses levaria tempo, mas não desiste. Como o próprio Montaigne provavelmente reconheceria, o que falta no fundo é vontade política. O que não chegará a tornar o trabalho de homens como Morin impossível, mas sem dúvida há que se preparar para o bom combate.
Bagaginha literária
A viagem é agora, o momento é já: confira o que vou levar daqui a pouco na minha bolsa:
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The Robots of Dawn, Isaac Asimov – Eu falei na semana passada que explicaria a respeito desta minha pretensa louca obsessão por Asimov... mas a confusão só aumenta quando eu decido pegar agora os livros da Saga dos Robôs, que o velhinho antes de morrer (evidente, depois seria um tanto difícil) decidiu juntar à da Fundação. Não se preocupem que em breve vou explicar esse imbróglio todo.
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Divine Invasions – A Life of Philip K. Dick – Lawrence Sutin – Esta é a biografia do homem que mais escreveu sobre a paranóia. Até hoje mal compreendido e indigesto para muita gente, o autor de Blade Runner e Total Recall é um verdadeiro estudo psicanalítico dos caminhos tortuosos da mente de Dick. Deviam traduzir.
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Aspettando Corto – Hugo Pratt – Falando em biografias, vou terminando no caminho uma pequena e rara jóia que peguei emprestada de um amigo paulista (estou devolvendo, hein, Octávio?). A biografia do quadrinhista criador do clássico Corto Maltese. A bio é curta (e repleta de histórias alucinantes que Pratt teria vivido durante e logo depois da Segunda Guerra, dignas de um Indiana Jones... e de Corto, claro).
Qual é a Deles?
Aqui você fica por dentro do que os internautas que têm algo a dizer estão lendo.
Saddam Hussein, Renascido das Cinzas, de Andrew e Patrick Cockburn. É um relato jornalístico-histórico sobre as peripécias do ditador iraquiano. Polícias secretas, medo, sorte e falhas da inteligência norte-americana facilitaram sua continuidade no poder. Fundamental para entender um pouco o delicado e complexo equilíbrio político no Oriente Médio.
Hackers, de Steven Levy
Relato desmistificador sobre a tribo mais enigmática do planeta. A ética hacker é inclusiva e socializante: a realidade deve ser modificada para o bem coletivo. Para enfrentar tamanho desafio, contam com o chamado "hands-on imperative". Muito legal a história do Tech Model Railroad Club, um grupo da década de 50 que se comprazia em montar complexas estruturas de trenzinhos de brinquedo.
Guilherme Kujawski, escritor e jornalista. Editor do blog
Samizdat.