5.10.01


De Peter Drucker, em entrevista recente para a revista Business 2.0: Os melhores livros sobre liderança são os de Xenofonte, um dos amigos e discípulos de Sócrates, que se tornou líder militar. Nada escrito desde então chega perto. Na verdade, não gosto particularmente de ler sobre administração. Eu leio Shakespeare.

Bom saber.

4.10.01

Uma Utopia nos Limites do Possível


A Cabeça Bem-Feita
Edgar Morin
Editora Bertrand Brasil
128 páginas



O subtítulo é bastante elucidativo: repensar a reforma, reformar o pensamento. O título, por mais que nos pareça gíria moderna, tem quase a idade do Descobrimento do Brasil. É do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592): Mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia.

Seu conterrâneo Edgar Morin concorda, e vai além: é preciso repensar a reforma do ensino, para reformar o pensamento e “fazer” as cabeças. É o tema deste livro de 1998, cuja quarta edição a Bertrand lançou recentemente e em boa hora: esta semana, durante o debate Ética, Ciência e Sociedade, na Casa da Ciência, no Rio de Janeiro, o físico Luís Pinguelli Rosa, da Coppe/UFRJ, comentou a notícia de que em breve serão introduzidas nas escolas ginasiais da rede pública as cadeiras de Filosofia e Sociologia com a seguinte pergunta: será que vale a pena incluir mais disciplinas no currículo agora? Será que, do jeito que está, elas não virão a se tornar apenas mais matérias para que os alunos tenham que estudar para tirar uma nota e passar?

A resposta de Morin, a julgar por este livro, parece óbvia: não, não vale a pena. Antes é necessário compreender o que está acontecendo na sociedade, ou seja, compreender o problema atual paradigma de educação, que institui uma visão compartimentada de mundo. Para ele, a hiperespecialização impede de ver o global (que ela fragmenta em parcelas) bem como o essencial (que ela dilui). Em tempos de globalização, portanto, é urgente se rediscutir e repensar o paradigma, para que ele permita o pensamento complexo, ou seja, a interligação de todas as facetas que constituem a busca do conhecimento: disciplinas como História, Sociologia, Economia e Psicologia, apenas para citar algumas, podem se tornar multidimensionais e ajudar na compreensão do ser humano e do universo que o cerca.

Este livro, junto com Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez), fornece uma boa compreensão do pensamento do próprio Morin. Introdutor do conceito de interdisciplinaridade, ele escreveu A Cabeça Bem-Feita em 1997, a convite de Claude Allègre, na época Ministro da Educação da França, como uma espécie de manifesto-proposta para uma reforma do ensino médio.

O livro é mais um manifesto (que discute os quês e os porquês) do que uma proposta (a parte dedicada ao como é menor do que se poderia esperar). Morin não cessa de discutir a questão da educação de uma forma que em determinados momentos dança perigosamente sobre o abismo da utopia, particularmente no Capítulo 6, A Aprendizagem Cidadã, em que preconiza uma sociedade onde os estados-nações não mais existam ou que pelo menos possam se articular de modo mais integrado. Infelizmente (e Morin não tinha obrigação de saber), a crise deflagrada pelo ataque aos EUA no dia 11 de setembro deixa cada vez mais claro que apenas os eixos de poder foram deslocados, mas que as questões territoriais – ainda que desta vez difusas – ainda são de difícil resolução, e a paz não passa de um conceito abstrato.

Mas o que salva seu discurso de cair no vazio é justamente sua consciência disso. Morin sabe que pode estar sendo utópico, e por isso guia suas idéias por um horizonte dentro dos limites do possível: assume que parte de um princípio semelhante ao de Rousseau ao escrever o seu Emílio, ou da Educação, e acaba escrevendo um manual destinado à reflexão, e não um guia prático com regras de como educar. Em nove capítulos e dois anexos, Morin analisa o ensino atual (tendo sempre a França como ponto de partida, mas os tópicos básicos que ele discute não diferem em nada da educação compartimentada que recebemos aqui no Brasil desde sempre) e lembra que certas áreas do saber, como a ecologia, a cosmologia e as ciências da Terra (geologia e metereologia, entre outras) já se articulam de maneira mais integrada.

O que ele propõe, no fundo, nos remete ao debate com Luís Pinguelli Rosa, que em determinado momento diz a seguinte frase emblemática: Ciência não é só para cientistas. Ou seja, ainda que seja preciso estudar para ser um cientista, não é necessário se encastelar em uma torre de marfim e tornar esse conhecimento algo de hierático ou esotérico. O conhecimento pode e deve ser transmitido e repartido.

Morin reconhece que dentro do meio acadêmico a resistência é muito grande, e que um processo desses levaria tempo, mas não desiste. Como o próprio Montaigne provavelmente reconheceria, o que falta no fundo é vontade política. O que não chegará a tornar o trabalho de homens como Morin impossível, mas sem dúvida há que se preparar para o bom combate.

Bagaginha literária


A viagem é agora, o momento é já: confira o que vou levar daqui a pouco na minha bolsa:

. The Robots of Dawn, Isaac Asimov – Eu falei na semana passada que explicaria a respeito desta minha pretensa louca obsessão por Asimov... mas a confusão só aumenta quando eu decido pegar agora os livros da Saga dos Robôs, que o velhinho antes de morrer (evidente, depois seria um tanto difícil) decidiu juntar à da Fundação. Não se preocupem que em breve vou explicar esse imbróglio todo.

. Divine Invasions – A Life of Philip K. Dick – Lawrence Sutin – Esta é a biografia do homem que mais escreveu sobre a paranóia. Até hoje mal compreendido e indigesto para muita gente, o autor de Blade Runner e Total Recall é um verdadeiro estudo psicanalítico dos caminhos tortuosos da mente de Dick. Deviam traduzir.

. Aspettando Corto – Hugo Pratt – Falando em biografias, vou terminando no caminho uma pequena e rara jóia que peguei emprestada de um amigo paulista (estou devolvendo, hein, Octávio?). A biografia do quadrinhista criador do clássico Corto Maltese. A bio é curta (e repleta de histórias alucinantes que Pratt teria vivido durante e logo depois da Segunda Guerra, dignas de um Indiana Jones... e de Corto, claro).

Qual é a Deles?

Aqui você fica por dentro do que os internautas que têm algo a dizer estão lendo.

Saddam Hussein, Renascido das Cinzas, de Andrew e Patrick Cockburn. É um relato jornalístico-histórico sobre as peripécias do ditador iraquiano. Polícias secretas, medo, sorte e falhas da inteligência norte-americana facilitaram sua continuidade no poder. Fundamental para entender um pouco o delicado e complexo equilíbrio político no Oriente Médio.

Hackers, de Steven Levy
Relato desmistificador sobre a tribo mais enigmática do planeta. A ética hacker é inclusiva e socializante: a realidade deve ser modificada para o bem coletivo. Para enfrentar tamanho desafio, contam com o chamado "hands-on imperative". Muito legal a história do Tech Model Railroad Club, um grupo da década de 50 que se comprazia em montar complexas estruturas de trenzinhos de brinquedo.
Guilherme Kujawski, escritor e jornalista. Editor do blog Samizdat.

3.10.01


Aviso aos meus fiéis leitores: por motivos de viagem a crítica semanal do Lanceiro Livros será publicada nesta quinta. Tem também a Bagaginha Literária, não se esqueçam. E o colega de profissão e de blogs, o jornalista e escritor Guilherme Kujawski, dando suas indicações de leitura. Até mais tarde!

1.10.01


Livro recebido: Como negociar com príncipes, de François de Callières (Editora Campus). Secretário de Gabinete de XIV, Callières ofereceu em 1716 sua própria versão do Príncipe, de Maquiavel. Segundo John Kenneth Galbraith, autor de A era da incerteza, "se retomasse as atividades diplomáticas, eu o tornaria leitura obrigatória para todos os envolvidos neste trabalho." Fundamental para quem gosta de política e negociação - ou simplesmente para quem gosta de um livro bem escrito. Obrigado a Silvia Kaczan, da Campus, pelo envio.

30.9.01

Gaveta de guardados


Revendo casualmente uma revista digital (folheando não, evidentemente - quando muito browseando), dou de cara com um artigo escrito há coisa de três anos, sobre um livro esgotado e hoje difícil de encontrar até mesmo nos sebos. Um calhamaço de cerca de 1100 páginas com histórias de guerra, editado durante a Segunda Guerra Mundial por ninguém menos que papa Hemingway. Reproduzo no Lanceiro, até porque o artigo sofreu ligeiríssima edição à minha revelia, e que modificou em muito o sentido: aqui, portanto, vai na íntegra. Para ler neste domingo lusco-fusco (pelo menos para quem mora no Rio). Espero que gostem.

Hemingway e a literatura em pé de guerra

Pode-se dizer tudo a respeito da Segunda Guerra Mundial, menos que ela tenha sido um espetáculo. Talvez só a Guerra Civil Espanhola tenha mobilizado tanto os corações e mentes do Ocidente na primeira metade do século que se encerra. O fervor quase religioso a que se entregavam pessoas de todas as partes para lutar contra a ascensão de forças autoritárias teve na guerra contra o Eixo seu último símbolo. Depois disso, os mocinhos viraram bandidos, a honra - se é que um dia isso existiu, diga-se de passagem - desapareceu de vez dos campos de batalha, e ficou apenas o homem, confrontado com seu maior inimigo: ele próprio.
Evidente que naquela época quem lutava na guerra sabia que de bonita ela não tinha nada, mas é preciso lembrar que não eram tempos de Vietnã e protestos, passeatas e palavras de ordem. Naqueles tempos sombrios, era necessário abrir os olhos dos homens de formas mais sutis. E um homem soube fazer isso muito bem, através de um livro.

Eu fiz esse intróito todo para apresentar a vocês, amigos leitores, talvez a resenha mais calhorda que vocês já leram na sua vida - porque é o comentário sobre um livro que nunca foi traduzido para o português e que provavelmente está esgotado no exterior. Só isto já daria motivos para uma guerrinha de nervos, mas o artigo não tem a menor intenção de ser metalingüístico. Antes, até, é um relato de uma descoberta deliciosa feita num sebo do Rio de Janeiro, e que eu gostaria de compartilhar com vocês.

O livro em questão se chama Men at war, e foi editado nos Estados Unidos por ninguém menos que Ernest Hemingway. O motorista de ambulância mais famoso de todas as batalhas fez um trabalho minucioso de pesquisa e paixão para reunir, em 1100 páginas, uma coletânea das maiores e melhores histórias de guerra de todos os tempos.

São 82 histórias. Estão lá desde histórias bíblicas, como a conquista de Jericó por Josué e a luta de Davi contra Golias, até relatos fresquinhos de batalhas navais da Segunda Guerra Mundial [a coletânea foi lançada em 1942]. Ficção e realidade se misturam sem nenhum pudor, como comprovam as histórias de Sir Thomas Malory ["A última batalha do Rei Arthur", fragmento de sua magnum opus Mort d'Arthur] e os relatos da invasão da Britânia por Júlio César e da batalha de Waterloo por Stendhal, que antes de escritor foi suboficial de Napoleão.

Hemingway chega a cometer o purismo de publicar integralmente o romance The red badge of courage, de Stephen Crane, considerado o clássico americano de guerra por excelência ao retratar com crueza e verdade os campos de batalha da Guerra Civil Americana. Crane não chegou a lutar nessa guerra, mas leu relatos, viu fotos, entrevistou soldados. Por isso Hemingway tinha um apreço especial por ele. Não por uma pretensa apologia da macheza [como não se cansarão de dizer os admiradores do Hemingway-estereótipo, que aliás não leram o conto "As Neves do Kilimanjaro", uma pérola de delicadeza, da própria grace under pressure, expressão criada pelo próprio em O velho e o mar, diga-se de passagem], mas simplesmente porque retratou as coisas como de fato aconteceram, sem embelezar os episódios sangrentos para o bem-estar da família americana.

Beleza, aliás, só pode ser encontrada nos diferentes estilos em que as histórias foram escritas. Autores tão díspares em construção narrativa e opiniões sobre a guerra como T.E.Lawrence ["Lawrence da Arábia"], William Faulkner, Leon Tolstói [de quem Hemingway fez publicar nada menos que três grandes passagens de Guerra e paz], Virgílio e o relato original do Cavalo de Tróia.

Mas nem só de grandes batalhas é feita esta coletânea. As vidas de civis e soldados, indivíduos que perdem sua identidade no turbilhão sem sentido da guerra também são retratadas pelas vozes de Stefan Zweig ["Buchmendel", um triste relato da Primeira Guerra Mundial], Ambrose Bierce [o clássico da Guerra Civil Americana "An occurrence at Owl Creek Bridge"] e até mesmo um anônimo soldado que atende pelo número 19022 ["Her privates we"]. O leitor ainda é brindado com histórias de Dorothy Parker, Rudyard Kipling, Guy de Maupassant e três contos de Papa Hemingway ["The fight on the hilltop", "The retreat from Caporetto" e "The chauffeurs of Madrid"].

Imperdível também é o prefácio de Hemingway ao livro. Apesar de ter sido reeditado para a edição de 1955, ele ainda conserva o sabor do olho do furacão, treze anos antes, em que os Estados Unidos haviam entrado na guerra recentemente. E a visão pessoal dele, que pode ser resumida na seguinte passagem: "O editor desta antologia, que participou e foi ferido na última guerra para acabar com todas as guerras, odeia a guerra e todos os políticos cuja péssima administração, cupidez, egoísmo e ambição provocaram esta guerra atual e a tornaram inevitável. Mas quando estamos numa guerra, só há uma coisa a fazer. Ganhá-la. Pois a derrota traz coisas piores do que qualquer coisa que possa acontecer numa guerra."

Men at war foi um livro feito primordialmente para incentivar e levantar o moral dos americanos nos tempos difíceis da Segunda Guerra. Mas também serviu para mostrar a face negra do abismo, o horror de matar e ser morto por razões que muitas vezes não diziam nada aos lutadores. E o horror da guerra era algo de que Ernest Hemingway entendia bem. Talvez porque nunca tenha conseguido superá-lo.