A Paixão Segundo Jung
C. G. Jung
Cartas
Volume I (1906-1945)
Editora Vozes
407 páginas
A publicação do primeiro volume de cartas de Carl Gustav Jung prepara o encerramento de um ciclo: finalmente os leitores brasileiros, anos depois de publicadas as suas Obras Completas por aqui e exatos trinta anos depois da publicação da correspondência no original alemão (editada por Aniela Jaffé, uma das mais conhecidas e respeitadas discípulas de Jung) podem ter acesso aos pensamentos do psicanalista suíço que sacudiu as fundações do edifício construído por Freud com seus estudos sobre mitologia e religião na sociedade.
Valeu a pena esperar: a edição bem-cuidada da Vozes e a ótima tradução de Edgar Orth garantem uma leitura sem surpresas – a não ser as provocadas pelo teor das próprias cartas, como as escritas para seu mentor (entre 1906 e 1912) Sigmund Freud.
Mesmo assim, o destaque do livro não é a troca de cartas com ele (que neste livro é muito restrita – a maior parte já foi publicada na própria correspondência de Freud), mas justamente para tudo aquilo que o distingue e separa do Pai da Psicanálise e das discussões intermináveis que acabaram por afastar os dois. O próprio Jung, quando decidiu autorizar a publicação das cartas, excluiu sua correspondência com Freud e determinou com os arquivos de seu ex-mestre, em Nova York, que as cartas só poderiam ser publicadas 30 anos após sua morte (prazo que depois reduziu para 20 anos).
Não importa: como todo intelectual da era pré-Internet, Jung era pródigo em cartas, e a imensa quantidade delas (cerca de mil nos três volumes que compõem a correspondência) é de uma variedade e riqueza que compensam de sobra a escassez de referências a Freud. Jung manteve diálogos epistolares não apenas com colegas psicanalistas, mas também com escritores, por exemplo, como o autor de
Demian e
Sidarta, Hermann Hesse, e James Joyce, cuja carta analisando o
Ulysses em 1932 – ainda que de modo um tanto superficial – é reveladora: Jung levou quase três anos para ler o livro, e não sabia dizer ao certo se havia gostado ou não. Mas admite, entre outras coisas, que “
as quarenta páginas seguidas (non-stop) ao final do livro são verdadeira corrente de preciosidades psicológicas”.
Outro destaque vai para a troca de cartas com o físico Wolfgang Pauli sobre mecânica quântica e sua possível relação com a telepatia e a clarividência, e também com o pioneiro nos estudos da parapsicologia, J. B. Rhine. Jung se interessava muito pelo (em suas palavras) “
caráter específico da psique em relação ao espaço e ao tempo, isto é, a supressão evidente dessas categorias em certas atividades psíquico-anímicas.” E explica um fenômeno paranormal ocorrido com ele próprio em 1898, onde em sua casa, uma faca explodira dentro de uma gaveta fechada (incidente contado em sua autobiografia
Memórias, Sonhos, Reflexões (também publicada pela Vozes) – algumas das experiências de Rhine são descritas em
Sincronicidade.
A relação de Jung com o Oriente não é esquecida, desde sua crítica do uso da Yoga pelos alemães na década de 20 (encarada por ele como uma práxis forçada, que deveria ser introduzida no seu próprio ritmo), até a troca de cartas com D.T. Suzuki, autor do clássico
Introdução ao Zen-Budismo e com o sinólogo Richard Wilhelm, tradutor do
I Ching para o alemão e com quem Jung traduziu livro milenar chinês
O Segredo da Flor de Ouro.
O leitor menos familiarizado com a figura de Jung, entretanto, pode se espantar com a antipatia profunda que ele demonstra com relação aos seus detratores – o que é apenas natural, visto que o psicanalista e mitólogo suíço era, tanto quanto qualquer um de seus leitores, demasiado humano. Mas engana-se quem espera encontrar nas páginas deste livro uma correspondência tranqüila, tipo zen, ou sisuda e carrancuda: nas cartas de Jung há um razoável espaço para o humor: num PS à uma carta para o Conde Hermann Keyserling, pede desculpas pelas manchas de querosene no papel. A justificativa? “
Meu lampião de repente apresentou sintomas de incontinência.”
Apesar de em vários volumes de suas
Obras Completas (como
Psicologia da Religião Ocidental e Oriental,
Tipos Psicológicos e
Sincronicidade) ou em
Memórias..., Jung escrever com bastante clareza, de modo a se fazer entender pelos leigos, suas cartas assumem um caráter ainda mais didático, em alguns casos beirando o paternalismo (à exceção, obviamente, de Freud e alguns de seus outros colegas, como Adler e Ferenczi). Mas o que não falta nunca em nenhuma carta de Jung é a animação, a alegria de quem estava profundamente apaixonado pelo que investigava: Jung era um homem em constante estado de paixão pela alma humana. E suas cartas são uma verdadeira correspondência amorosa com a humanidade. Uma excelente introdução à vida e à obra do homem que, juntamente com Freud e Reich (infelizmente, as editoras brasileiras ainda nos devem a tradução da biografia de Reich por Colin Wilson), ajudaram a entender os sonhos e os desejos de todos nós. Vamos aguardar com ansiedade os próximos dois volumes.